Pintura
RENATO FIALHO: A PINTURA VIVE
Sobre o homem e o artista Renato Fialho pode-se dizer como nos versos
de Drummond: "Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo".
O temperamento apaixonado e uma postura artística eminentemente
autônoma, livre de todo e qualquer comprometimento programático
ou estilístico mais estrito – e estreito – são
qualidades que fundamentam e sintetizam a longa e coerente trajetória
de um pintor que, a par de autodidata, nunca esteve alheio às questões
que historicamente determinaram os rumos da pintura moderna.
Em seu conjunto, a obra pictórica de Renato Fialho expressa uma
profissão de fé nas qualidades imanentes da pintura, qualidades
estas postas em discussão desde que a negatividade crítica
do ready-made de Marcel Duchamp inaugurou o debate em torno do "fim
do quadro". Renato Fialho não ignora este debate, mas responde
a ele reafirmando sua crença pessoal na pintura como realidade
sensório-afetiva e fazendo de sua praxis de pintor um intenso,
sincero e generoso ato de fervor cromático. O cromatismo intenso,
resultante da postura eminentemente empática que o artista estabelece
com o mundo está, por sua vez, a serviço de uma espécie
de lirismo denso: o manejo dos vermelhos e amarelos, dos verdes e azuis,
trabalhados muitas vezes em camadas espessas e pacientemente superpostas
consubstancia uma poética de exaltação à dimensão
matérica do pigmento.
Algumas das melhores telas de Renato Fialho, paralelamente a essa exaltação
cromática, parecem dialogar com um tipo de maravilhamento originário
que o artista se esforça em reter, reconstruir e comunicar –
isto é, devolver ao mundo – em forma de pintura. É
assim, por exemplo, com a solitária quietude que se pode perceber
nos objetos magistralmente compostos da Natureza Morta – Garrafas.
Outras vezes – e agora me remeto a algumas paisagens, como Favela
– Parada de Lucas – a distância relativamente ao motivo
preserva o dado contemplativo, no qual à distância no espaço
corresponde uma distância no tempo - pois a memória, por
natureza produtora e propiciadora de imagens, é o tra das vertentes
constitutivas da obra de Renato Fialho, como bem o demonstram um sem número
de telas que tematizam jogos infantis. Mas a memória que impregna
as telas de Fialho é antes de matriz bergsoniana que proustiana,
comemorativa e não rememorativa: e não é a lembrança
de uma infância idílica que transparece e sim a criança
presente e viva no artista que se expressa através das massas de
cor.
E é um forte veio humanista que faz com que a figura humana permeie
– e até mesmo conduza – grande parte da obra de Renato
Fialho. Inicialmente apresentando-se mais definida, diferenciando-se e
destacando-se enfaticamente do fundo – como na tela Bebedores de
Cerveja , de 1970 - , torna-se mais integrada a este – e o Nu de
1971 é primoroso ao fundir figura e fundo valendo-se da delicadeza
das inúmeras "passagens" de tons de vermelho - , até
a apoteose da dissolução quase total, como em Meninos de
Rua, já na década de 90: inicialmente presença pictórica,
a figura humana aqui já é pura realidade pictórica.
Importa destacar o caráter gradual do processo, indicando antes
de mais nada uma necessidade interior do artista e orgânica à
obra, ainda que em diálogo com as conquistas e transformações
promovidas pelas diversas linguagens modernas.
Mas o artista verdadeiro está sempre em movimento, e telas recentes
apontam para novos caminhos e possibilidades ao configurarem relações
espaço-temporais completamente distintas de obras anteriores. O
espaço mítico, ilimitado e atemporal de Sol e Lua –
Uma Lenda Indígena e um certo retorno à linha e ao desenho
têm o poder de instaurar uma outra realidade, que não é
nem o retorno à cotidianeidade dos Bebedores de Cerveja nem tampouco
puramente pictórica como em Meninos de Rua; de modo semelhante,
Jesuíno Brilhante é antes um emblema do que um tipo –
o cangaceiro – tantas vezes presente em telas anteriores do artista.
Assim, assistimos tanto a um alargamento temático como também
a um retorno, renovado, do pintor a um motivo já anteriormente
explorado. E esta última característica nos remete a uma
afirmação de Paul Valéry, segundo a qual o artista
não é alguém que tem algo a dizer e sim aquele que
sabe como dizer... Renato Fialho sabe como dizer, e por isso sua pintura
vive: vibra, pulsa, encanta o olho e o olhar.
Raul Motta* ,
Janeiro / Fevereiro de 2002
* Raul é Mestre em História Social da Cultura.
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